quinta-feira, outubro 29, 2009

Dias lindos

O dia deu em bonito.

Amanheceu um céu limpo e agora à tarde sopra um vento forte, de leste, assegurando dias lindos pela frente.

O céu do Rio não tem nuvens em tempo bom. Daquelas do interior ou das praias do Nordeste, em que se adivinham figuras, e que, de tão cheias, assustam os aviadores.

Por aqui, ou está limpo ou coberto.

Às vezes, para o lado da Raiz da Serra, avistam-se algumas nuvens, pesadas. Chove forte por lá no verão.

quinta-feira, outubro 22, 2009

Eu e Santiago, no Lautrec

Eu estava em Fortaleza e pretendia rever Santiago. Como encontrar um lugar tranqüilo, para ouvir novamente sua longa conversa, seus resmungos de velho solitário, numa cidade ainda estranha para mim? Duas jovens executivas, moças decididas e corajosas, bastante sensíveis às minhas dificuldades, indicaram-me o que seria um pequeno e intimista restaurante francês. Quando me disseram que ficava em um shopping, duvidei. A maldição dos shoppings centers reside na contradição – insolúvel – de que quanto mais autêntico procura ser o que lá nos é oferecido, mais falso se torna. Imaginem: um bistrô, francês, logo ao sul do Equador, e num shopping.

Pois havia muito que não me era apresentada uma novidade encantadora como o Lautrec. Não estava num shopping de verdade, mas sim em uma simpática galeria com terraços ao ar livre, mesas por ali dispostas. O pequeno restaurante tinha também um ambiente fechado, tranqüilo e muito charmoso, onde escolhi ficar, numa pequena mesa ao fundo.

Santiago não mudara nada, desde meus tempos do colegial. Mudei eu. Nesse reencontro pude melhor compreender e admirar sua tenacidade e seu amor à vida. Sua coragem de espírito, sua inteligência fria e vigorosa, sua capacidade de agir em todas aquelas circunstâncias como um ser dotado de razão e de um forte sentimento de superioridade perante a força animal. Lá estava ele, outra vez, só, no mar infinito, em luta com o maior dos peixes com que jamais sonhara em sua vida.

Dizem que Kipling, quando escrevia em sua escrivaninha voltada para o jardim de sua casa, em Bombaim, fazia longas pausas, olhando o infinito, a pena em sua mão suspensa. E que, se você estiver lendo Kim no ritmo certo, irá notar, na narrativa, onde ocorreram esses momentos pensativos. Assim também percebi, relendo O Velho e o Mar, ali naquele canto discreto do Lautrec, que Hemingway deve ter construído a narrativa da saga de Santiago olhando as águas turquesas do Caribe, em intervalos de duas doses, ou mais, de margueritas, entre os gatos de sua casa em San Francisco de Paula, Cuba.

quinta-feira, setembro 10, 2009

Um pouco de Vieira

Questão é curiosa nesta Filosofia, qual seja mais precioso e de maiores quilates: se o primeiro amor, ou o segundo?

Ao primeiro ninguém pode negar que é o primogénito do coração, o morgado dos afectos, a flor do desejo, e as primícias da vontade.

Contudo, eu reconheço grandes vantagens no amor segundo. O primeiro é bisonho, o segundo é experimentado; o primeiro é aprendiz, o segundo é mestre: o primeiro pode ser ímpeto, o segundo não pode ser senão amor.

Enfim, o segundo amor, porque é segundo, é confirmação e ratificação do primeiro, e por isso não simples amor, senão duplicado, e amor sobre amor.

É verdade que o primeiro amor é o primogénito do coração; porém a vontade sempre livre não tem os seus bens vinculados.

Seja o primeiro, mas não por isso o maior.

(Padre António Vieira, in "Sermões")

sábado, agosto 29, 2009

Somos todos crentes

Nossos governantes, especialmente aqueles que afirmam ter fé, acreditam que andar em companhia de ladrões não é motivo de vergonha. Afinal, Jesus vivia entre eles, e morreu entre dois deles. Ladrões pobres, é claro, pois senão não estariam condenados. Mas ignoram que Jesus preocupava-se em levá-los para o Paraíso, como falou de sua cruz a um deles: "Em verdade, eu te digo, hoje estarás comigo no Paraíso." (Luc 23,43). Vieira, inspirador destas linhas, afirmava que, ou os governantes levam os ladrões ao Paraíso, ou os ladrões os carregam consigo para o Inferno.

E o que fazem os nossos governantes com seus ladrões? Nem os fazem pagar, não raro os aceitam de volta e até os promovem a cargos mais altos. Para de mais alto, mais roubarem. E depois, os governantes, não querem eles pagar. E o exemplo que temos vêm do próprio Criador. Assumiu a responsabilidade por uma nomeação feita com toda a lisura, transparente - não havia concorrentes e o candidato tinha méritos de sobra: "Deus disse: Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança." (Gen.1,26) - enviando seu próprio Filho para pagar, com seu doloroso sacrifício, o crime cometido por Adão, o primeiro homem e já o primeiro ladrão.

Saibam nossos governantes que andar em companhia de ladrões é tradição dos poderosos. Em outros tempos, os favoritos, aqueles que acompanhavam as autoridades, eram denominados laterones (aqueles que ficam ao lado). Com a corrupção da linguagem, vieram a ser chamados latrones, e, finalmente, em bom português, ladrões. Não só as palavras se corrompem, como também as funções.

terça-feira, junho 30, 2009

Inverno?

As amendoeiras e algumas moças de Ipanema que vestem cachecol, casaco e botas, parecem as únicas criaturas a acreditar que o inverno existe por aqui.

O Rio é o lugar escolhido pelo Sol para fugir de Buenos Aires, de Porto Alegre e Curitiba, daquelas manhãs nevoentas e geladas que o maio de lá começa a trazer.

sexta-feira, março 06, 2009

Protestos

Não sei porque as pessoas protestam contra certos comportamentos de algumas tribos em seus bairros ou em suas ruas. Pero de Magalhães Gândavo, que andou por aqui em meados do séc. XVI, publicou uma descrição dos costumes dos arredores da Farme de Amoedo, seus redutos, com a devida aprovaçam da Santa Inquisição, que nada viu que atentasse aos bons costumes:

APROVAÇAM
Li a presente obra de Pero de Magalhães, por mandado dos Senhores do Conselho geral da Inquiziçam, e nam tem cousa que seja contra nossa Santa Fee catholica, nem os bons costumes, antes muitas, muito pera ler, oje dez de Novembro de 1575.-- Francisco de Gouvea.

DO GENTIO QUE HA NESTA PROVINCIA, DA CONDIÇÃO E COSTUMES DELLE, E DE COMO SE GOVERNAM NA PAZ
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Algumas Indias ha que tambem entre elles determinam de ser castas, as quaes nam conhecem homem algum de nenhuma qualidade, nem o consentirão ainda que por isso as matem. Estas deixam todo o exercicio de mulheres e imitam os homens e seguem seus officios, como senam fossem femeas. Trazem os cabellos cortados da mesma maneira que os machos, e vão á guerra com seus arcos e frechas, e á caça perseverando sempre na companhia dos homens, e cada uma tem mulher que a serve, com quem diz que he casada, e assi se comunicam e conversam como marido e mulher.

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sexta-feira, fevereiro 27, 2009

Fatalidade recifense

Santo Agostinho afirmava que sabia o que era o tempo, mas que, se alguém lho perguntasse, não saberia responder. Existem coisas difíceis de definir, algumas impossíveis.

Estou sentado aqui, no mais antigo restaurante do Recife e, provavelmente, do Brasil, e fico pensando como dizer a alguém do Rio, o que é o Leite. Mário de Andrade foi quem chegou mais perto: fatalidade recifense. Mas não é tudo. Tudo, em Recife, é o Capibaribe, um rio que produz poetas e estadistas e em cujas margens o Leite nasceu.

O resto é imaginar a tripulação do Zepellin fazendo algazarra em uma de suas mesas, depois de atravessar o Atlântico. Não seria abusado alguém que citasse, entre seus fregueses, Gilberto Freyre, Assis Chateaubriand e João Pessoa (que teve a delicadeza de não ser assassinado no Leite, mas logo à saída).

Agora, lembrar que Sartre e Mme. De Beauvoir almoçaram por ali, é muita provocação.