sábado, setembro 22, 2018

ANTES DE TUDO


Uma experiência de sucesso no combate ao crime.

O que se pode aprender com o combate aos sequestros no Rio nos anos 1990? 
O mundo dos negócios tem uma lógica própria que não admite vaidades. Quando uma empresa lança uma ideia ou produto inovador, a primeira coisa que as concorrentes fazem é copiar aquilo sem pudor e, quando possível, aprimorar para relançar. Em nova embalagem, que seja. É a lei da sobrevivência. Pois note-se o que aconteceu, naqueles anos, na área de segurança pública: Houve no Rio de Janeiro um caso exemplar de combate aos sequestros. Ao deparar-se com o intolerável recorde de 108 sequestros registrados num só ano, empreendeu-se uma ação eficaz. Três anos depois, a polícia do Rio havia esvaziado todos os cativeiros. Do sucesso dessa experiência, restaram muitas certezas, mas uma indagação ficou no ar: porque ninguém nunca sequer tentou aprender com esse episódio?

Por que não se aproveitou essa experiência?
Há quem vá dizer que no mundo habitado pelos políticos não há grandeza desta latitude. E os políticos não vão poder reclamar. Costuma-se mesmo abater boas idéias a golpes de caneta quando a procedência é a prancheta da oposição. O fato é que não se pode mais transigir com essa conduta no campo da segurança pública. Não por nada. Mas é que há muita gente morrendo, neste momento, em nosso país, e nada parece acontecer. Quem já perdeu alguém nesta guerra, sabe como é desesperador. Para que não se perca mais tempo, vamos direto ao ponto: é preciso que se diga o que aconteceu no Rio para que esta experiência possa ser apropriada. 

Como tudo começou?
A sinalização de que algo começava a mudar foi dada, ainda em 1995, pelo então chefe da DAS, Hélio Luz. “A DAS não sequestra mais”, anunciou. Era uma frase com dois recados. Um, à sociedade, de que a polícia reconhecia seus problemas internos. Outro, aos maus policiais, sequestradores, de que seus dias estavam contados. O mesmo se repetiu com a chegada à DAS do delegado Marcos Reimão, dois anos depois. A simples notícia de que ele estaria à frente da divisão fez com que sete sequestrados fossem soltos. Houve quem levantasse a hipótese de que policiais estivessem por trás dos crimes. Bastou a percepção de que autoridade se impôs para que a casa começasse a se arrumar. 

O que aconteceu?
O Rio venceu os sequestros não porque os sequestradores tenham mudado para outro estado a sede de seus negócios. A maior parte deles, ainda hoje, tem hoje endereço fixo no complexo de segurança máxima de Bangu. O que se conseguiu foi reunir policiais dispostos a realizar uma missão da qual mais tarde se orgulhariam, dar-lhes condições de trabalho e um suporte de inteligência às investigações. Tudo isso como apoio e a presença constante da sociedade civil. Nada de novo. Só o trabalho levado a sério.

Como aconteceu?
O primeiro passo foi a realização de um seminário em que se juntaram políticos, acadêmicos, policiais civis e militares e, o mais importante, as vítimas. Gente que foi contar o que sentiu, viu e ouviu quando estava sob o domínio de bandidos. Se ainda vale a comparação com o mundo empresarial, levou-se o cliente para a reunião de diretoria. A nova Divisão Anti-Sequestro (DAS) que surgiu dali também tinha inovações. Acabou-se com o sistema em que um caso é investigado por apenas uma equipe que se desdobra em várias tarefas, como é o usual nas delegacias, onde os plantões de 24 horas são intercalados por 72 horas de folga. Não havia como deixar os sequestrados esperando no cativeiro pela folga do policial. Os casos passaram a ser assunto de toda a divisão, mas cada um com sua tarefa específica. 

Qual a razão do sucesso?
Inteligência e investigação, antes de tudo, como fossem uma única tarefa. Os homens de inteligência analisavam as informações enquanto investigadores buscavam pistas. Tudo isso sob a inspiração do CISP, órgão de inteligência da polícia do Rio na época, sob a batuta do lendário Coronel Romeu. O Disque-Denúncia, criado alguns anos antes por Romeu, funcionou — e ainda é assim — como uma ferramenta poderosa para que as comunidades pudessem colaborar com o trabalho policial sem medo, certas de que a confidencialidade é um compromisso jamais desfeito. Cento e noventa e oito bandidos foram presos pela Divisão Anti-Sequestro em dois anos. Em nenhum desses casos permitiu-se o pagamento de resgate. Com isso, tirou o fôlego financeiro que as quadrilhas teriam para financiar novas ações. E assim se conseguiu chegar, em maio de 1998, ao “sequestro zero” no Rio de Janeiro. As pessoas certas, trabalhando sério, com o apoio da sociedade. É difícil?

E agora, vinte anos depois?
Tudo isso hoje parece muito simples. O fato é que até então, ninguém sabia disso. Descobriu-se trabalhando. Essa parte já foi feita. Porque, até agora, ninguém procurou aprender com a experiência do Rio de Janeiro? Com a palavra os homens públicos.

domingo, novembro 20, 2011

O Filho de Luiza Mahin

Dia da Consciência Negra, 20 de novembro, uma homenagem a Zumbi dos Palmares, morto pelos paulistas, uma gente estranha naquele tempo, que nem português falava direito. Eram pardos. Descendentes de tupiniquins, acabariam desbravando e conquistando o país. Nem sempre se deram bem. Levaram uma corrida dos reinóis nas Geraes. Mas hoje em dia fazem o que bem entendem com o país.

É de um grande paulista, nascido na Bahia, que o dia de Zumbi me faz lembrar. Um negro, que como Zumbi tinha conhecimento das letras. Zumbi aprendeu Português e Latim ainda criança. Desde cedo teve boa formação. Luiz Gama, bem mais tarde: foi alfabetizado aos 17 anos. Fugiu aos 18. Assentou praça na Força Pública de São Paulo em 1848. E ali teve acesso a uma rica biblioteca, de seu protetor e mestre, o conselheiro Furtado. Ele mesmo nos relata: ”o exmo. sr. Conselheiro Furtado, por nímia indulgência, acolheu benigno, em seu gabinete, um soldado de pele negra, que solicitava ansioso os primeiros lampejos da instrução primária. Ao entrar nesse gabinete, consigo levava ignorância e vontade inabalável de instruir-se.”

Quando ouço falar de grandes vultos brasileiros, não encontro nenhum que se compare ao advogado (rábula) Luiz Gama, filho de uma quitandeira em Salvador, Luiza Mahim, nagô livre e sempre envolvida nas diversas rebeliões locais. Há um tempo a revista Época fez uma pesquisa entre seus leitores sobre qual o maior dos brasileiros. Rui Barbosa foi o escolhido. Baiano por baiano, sou mais o filho de Luiza Mahim. Rui concordaria comigo, conhecia e admirava Gama. Não sei sehouve leitores que votaram em Zumbi. Mas o meu voto foi para Luiz Gama, não só o maior dos brasileiros, como também o mais corajoso. E herói, não mártir. Vitorioso e reverenciado em vida. Temido pelos inimigos da liberdade. Seu enterro foi o mais emocionante acontecimento da história de São Paulo. Um dia vocês verão isso em uma minissérie da Globo, e, aí, vão acreditar.

Nem em São Paulo ele hoje é reconhecido. Num artigo em que comenta o desrespeito às leis contra o tráfico negreiro pelo Império Brasileiro, Marcelo Coelho perdeu uma boa oportunidade de citar Luiz Gama, que libertou centenas e centenas de escravos, com base nessas leis. Todos haviam chegado ao Brasil após a proibição. Também Boris Fausto, em outro artigo na Folha de SP, fez comentários sobre o Conselho de Estado e sobre um parecer de Pimenta Bueno que tratava da condição dos escravos perante a constituição brasileira da época (cerca de 1860). Seria oportuno também citar Luiz Gama, que em um longo artigo – “Questão Jurídica”, em 18 de outubro de 1880, em A Província de São Paulo - relata e praticamente esgota o assunto das tentativas de interpretação dos escravocratas a respeito da lei de 7 de novembro de 1831 (“para inglês ver”), e onde bate pesado no então conselheiro Nabuco de Araújo (pai de Joaquim Nabuco).

Duas citações deste grande herói brasileiro bastam para fazê-lo o maior de todos:
“O escravo que mata o senhor, seja em que circunstância for, mata sempre em legítima defesa” – Tribunal do Júri de Araraquara (o presidente do júri se viu obrigado a suspender a sessão, devido ao tumulto provocado).
“O Brasil americano e as terras do Cruzeiro sem rei e sem escravos” – São Paulo, 2 de dezembro de 1869, dia do aniversário de D. Pedro II.

quinta-feira, julho 15, 2010

DÚVIDAS

Esse dia frio de hoje está pedindo Brahms ou Mahler?
Fellini ou Woody Allen?
Se Borges, vinho chileno, se Neruda, vinho argentino, ou vice versa?
Arpoador ou Mirante do Leblon?
Calada ou assanhada?
(2010 será lembrado como aquele ano em que o inverno caiu num fim de semana chuvoso em julho)

quarta-feira, junho 30, 2010

Yeats em Ipanema

Estou encostado no balcão da Polis Sucos.
A jovem morena fala-me a sério sobre as eleições e a candidatura de Gabeira. Estou atento.
Sou capaz de descrever os seus cabelos negros, ainda úmidos e revoltos pela toalha da academia, seu olhar determinado e a firmeza de seu queixo. As saboneteiras ficam mais salientes a cada argumento seu, quando os ombros acompanham o mover dos braços agitados pela política.

Ela depõe o copo de açaí sobre o vidro e assisto compenetrado ao enumerar de razões em seus dedos longos, e meus ouvidos captam as variações de seu tom de voz ligeiramente rascante.
Mas não a escuto. E nem mesmo percebo o que lhe respondo. Mas poderei sempre recordar sua maneira de reagir aos argumentos que ignoro ter usado, o seu dar de ombros desdenhoso e as aflições dos gestos faciais que o acompanharam.

Meu pensamento está distante da política, mas ronda por ali, bem perto, sem que ela perceba o predador à espreita da presa descuidada.

How can I, that girl standing there,
My attention fix
On Roman or on Russian
Or on Spanish politics?

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sábado, junho 26, 2010

Tédio eleitoral

O que mais me aborrece nesta eleição morna não chega a ser o medo brizolista da fraude, a falta de confiança nessas urnas misteriosas. É claro que se deve estar atento. A cada dia assistimos a novas demonstrações de ousadias e insanidades desses aloprados.

O que mais me aborrece, insisto, é que, sendo todos obrigados a votar, aqueles que se sentem revoltados com a situação do país, não podem manifestar sua indignação e protestar votando em Cacarecos e macacos Tião, como antigamente. As opções do voto nulo ou branco, que essas máquinas oferecem, são insossas, sem atrativo algum.

Tenho meus candidatos e vou votar direitinho. Mas nem todos pensam como eu. Talvez alguns queiram votar na Cicarelli, no Bin Laden, ou até no Evo Morales (numa nova versão do “basta de intermediários”).

Palavrão, então, nem pensar.

sexta-feira, junho 18, 2010

Celeiro (Bernardo Soares)

A sinceridade é uma grosseria, a verdade é a mais perigosa das ilusões.

Quando leio na revista que o Celeiro é o melhor restaurante a quilo e o que tem a melhor salada da cidade, pressinto que as pessoas que assim o entendem nunca foram capazes de perceber e nem foram tocadas pela morte da mãe do Bambi, ou pela possibilidade de Capitu não passar de uma vadia, como a Bovary.

Saber abstrair das coisas naturais da vida tudo o que têm de real é o grande segredo que nos faz suportá-la. Com os restaurantes, mais ainda. Restaurantes têm alma, nos trazem curiosas sensações, devaneios secretos, entre gentes que não nos percebem, ou que fingem não nos perceber, que nos deixam sorrir à toa, falar alto, fazer do salão a extensão de nossa personalidade.

Comem-se saladas no Celeiro porque elas estão lá. Ninguém vai ao Antiquarius para comer bacalhau. Se assim o faz, é ninguém, com algum dinheiro.

Não conheço quem tenha definido, com a linguagem adequada para que espíritos delicados compreendam, o que são certos ambientes e segredos do Rio de Janeiro. E os que não conseguem e têm uma pauta a observar, prazos a cumprir, o fazem com base nas insignificâncias das coisas reais que os cercam.

Como quem afirma que a água é a combinação de hidrogênio e oxigênio, qualquer idiota pode falar que, na verdade, o Celeiro é uma padaria que vende comida a quilo.

A vida é como aquela estrela brilhante que vemos pela manhã. Está lá, mas já foi o que parece ser.

(Se Fernando Pessoa e Woody Allen tivessem nascido em Ipanema, nunca teriam escrito poesias ou feito filmes, mas estariam sempre no Celeiro. Sós.)

terça-feira, junho 08, 2010

Shangri-lá

Aquela moça simpática, que está no Rio Show (O GLOBO), a brindar-nos com doses de bom humor e de conhecimentos etílicos, Deise Novakoski - espero que seja seu sobrenome de solteira – levou-me, este fim de semana, de volta aos tempos da guerra, quando aviadores ingleses, abatidos pela artilharia alemã, eram conduzidos através do continente, até o sul da França. Ali nos eram entregues por oficiais da resistência, e partiam, com a ajuda de nossa rede, para a Espanha, em rotas que cruzavam os Pirineus.

Minha base ficava em Nice, e meu contato era um jovem agente britânico, que tinha uma especial habilidade em obter informações através de atraentes jovens francesas, recrutadas graças ao seu charme, a maços de cigarros e a meias de seda vindas da América. Para encantá-las, marcava os primeiros encontros no bar do Hotel Negresco (Le Relais, creio eu). Lá, o barman preparava para elas um irresistível cocktail, Shangri-lá, de inocente cor de rosa e feito de uma poderosa mistura de Campari e Beefeater, este último fornecido secretamente pelo Tesouro de Sua Majestade Britânica aos estoques de gin do Negresco.

Hoje eu peço à barwoman - ó tempora!!! - do Copa Café para adicionar três gotas de Angostura, porque prefiro usar apenas meia dose de Campari, para cada uma de gin. O resto é gelo, suco de laranja e duas colherinhas de açúcar. Uma rodela de laranja e um canudinho vermelho dão uma graça adicional ao copo longo. Um conselho: não as deixe passar da terceira dose.

Mellors, que se dizia oficial da Marinha Mercante Inglesa, afirmava que o Shangri-lá era criação sua, e que ensinara a receita ao barman do Le Relais. Isto, sinceramente, é a única coisa que não posso afirmar ser verdadeiro nessa história.

sexta-feira, maio 28, 2010

Volver

Para voltar a ser jovem, eu seria capaz de qualquer coisa, menos fazer caminhadas, levantar cedo ou freqüentar academias. Acho que para recuperar e manter a juventude, as pessoas têm apenas que repetir as mesmas loucuras.

Adoro os prazeres simples, são o último refúgio das pessoas complexas.

Não quero mudar o mundo, a não ser quando as pessoas me procuram para isso. Neste caso, até que eu ajudo bastante.

sábado, maio 22, 2010

Modernidades

Em Vitória, para participar de um fórum, uma agradável surpresa: o aeroporto é antigo, desce-se para a pista e se vai caminhando ao ar livre até o terminal. Uma brisa amena nos recebe.

Não há dúvida de que as reformas dos aeroportos são necessárias. Mas nos tiram alguns encantos de outras épocas. Assomar o alto da escada do avião, no Santos Dumont, com a vista alcançando o Pão de Açúcar e a Glória, ou, do outro lado a Ponte, deixou de ser uma das alegrias de sentir-se no Rio. Restará a visão da Ilha Fiscal, pouco antes de se tocar o solo, ou do Monumento aos Pracinhas, na aproximação do terminal.

Aqui no Recife (morram de inveja, escrevo de Boa Viagem), onde o aeroporto também foi reformado, perdeu-se a brisa que nos abraçava assim que deixávamos o avião. Até de olhos fechados sabia-se estar no Recife.

Aquela sensação de reclame da PANAIR numa página de Seleções nos vai abandonando, em troca dos labirintos estafantes dos novos terminais.

sexta-feira, março 19, 2010

Troia

Ao andar pela rua da Alfândega e adjacências, vejo o quão longe estamos dos horrores do Oriente Médio. Caminho por ruas do Rio em que descendentes daqueles pobres povos em guerra insolúvel convivem tranqüilamente, entre si e com aqueles coreanos que já foram sinistros, e que hoje sorriem e piscam os olhos para as morenas que por ali passeiam. É uma pena que em nosso SAARA não haja lugar para mais gentes do oriente. Seriam bem-vindas, como sempre o foram.

Homero mostrava os atos dos homens como conseqüência das disputas fúteis dos deuses do Olimpo. Se Júpiter desafiava Saturno (seu pai, prestem atenção), calamidades terríveis atingiam a humanidade, espalhando guerras e pestes, sofrimento, dor e fome em cada povo, em cada cidade, em cada lar.

O ambiente ideal para essas manifestações sempre foi o Mediterrâneo e seus arredores. Ali os conflitos explodiam. Egípcios, babilônios, gregos, persas, romanos e judeus se engalfinhavam em batalhas cruéis, revoltas, longos cercos, punições coletivas, remoção forçada de populações inteiras, massacres e destruição de cidades e templos.

Parece que Homero estava certo. Percebe-se em nossos tempos, que o Deus dos americanos – 89 por cento dos americanos acreditam que Jesus Cristo os ama de maneira pessoal e individual – encontra-se envolvido numa acirrada disputa com Iehwah (seu pai). Este, cansado da ineficiência de sua Aliança com os descendentes de Abraão e Moisés, após a inegável vitória do cristianismo politeísta de Constantino, abandonou-A ou pelo menos A ampliou, acolhendo Maomé e seu povo em suas hostes monoteístas. Assim, aquela região continua sofrendo as desgraças provocadas por vaidades divinas, e, desde os tempos de Tarik e das Cruzadas, por um combate brutal envolvendo nos dois lados, Deuses de uma mesma substância, ou talvez, de um lado, uma confusa Trindade e, do outro, um Deus intratável e ciumento, sempre furioso com a gente.

O que me preocupa é o fato de existirem esforços para trazer algumas dessas concepções deístas americanas para o Brasil, sem a avaliação das conseqüências de tais iniciativas. As pessoas que acreditam que a imitação do Sistema está nos movimentos do hip hop ou do funk, não estão vendo que a invasão imperial se dá por conceitos do sagrado, diferentes daqueles com que estamos acostumados a viver. Alexandre e César já compreendiam a necessidade do divino para um império dominar povos diversos.

Aqui, na verdade, nós nunca demos ouvidos a esses conflitos de divindades, e nossos cristãos, mais devotos de Maria - mãe de Jesus de Nazaré e de Tiago - sempre conviveram bem com algumas entidades divinas trazidas da África Interior, um tanto ferozes, mas, em geral, inofensivas.

Deus, para a maioria de nós sempre foi uma questão íntima, e, para alguns, algo que não faz a menor diferença.
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quinta-feira, outubro 29, 2009

Dias lindos

O dia deu em bonito.

Amanheceu um céu limpo e agora à tarde sopra um vento forte, de leste, assegurando dias lindos pela frente.

O céu do Rio não tem nuvens em tempo bom. Daquelas do interior ou das praias do Nordeste, em que se adivinham figuras, e que, de tão cheias, assustam os aviadores.

Por aqui, ou está limpo ou coberto.

Às vezes, para o lado da Raiz da Serra, avistam-se algumas nuvens, pesadas. Chove forte por lá no verão.

quinta-feira, outubro 22, 2009

Eu e Santiago, no Lautrec

Eu estava em Fortaleza e pretendia rever Santiago. Como encontrar um lugar tranqüilo, para ouvir novamente sua longa conversa, seus resmungos de velho solitário, numa cidade ainda estranha para mim? Duas jovens executivas, moças decididas e corajosas, bastante sensíveis às minhas dificuldades, indicaram-me o que seria um pequeno e intimista restaurante francês. Quando me disseram que ficava em um shopping, duvidei. A maldição dos shoppings centers reside na contradição – insolúvel – de que quanto mais autêntico procura ser o que lá nos é oferecido, mais falso se torna. Imaginem: um bistrô, francês, logo ao sul do Equador, e num shopping.

Pois havia muito que não me era apresentada uma novidade encantadora como o Lautrec. Não estava num shopping de verdade, mas sim em uma simpática galeria com terraços ao ar livre, mesas por ali dispostas. O pequeno restaurante tinha também um ambiente fechado, tranqüilo e muito charmoso, onde escolhi ficar, numa pequena mesa ao fundo.

Santiago não mudara nada, desde meus tempos do colegial. Mudei eu. Nesse reencontro pude melhor compreender e admirar sua tenacidade e seu amor à vida. Sua coragem de espírito, sua inteligência fria e vigorosa, sua capacidade de agir em todas aquelas circunstâncias como um ser dotado de razão e de um forte sentimento de superioridade perante a força animal. Lá estava ele, outra vez, só, no mar infinito, em luta com o maior dos peixes com que jamais sonhara em sua vida.

Dizem que Kipling, quando escrevia em sua escrivaninha voltada para o jardim de sua casa, em Bombaim, fazia longas pausas, olhando o infinito, a pena em sua mão suspensa. E que, se você estiver lendo Kim no ritmo certo, irá notar, na narrativa, onde ocorreram esses momentos pensativos. Assim também percebi, relendo O Velho e o Mar, ali naquele canto discreto do Lautrec, que Hemingway deve ter construído a narrativa da saga de Santiago olhando as águas turquesas do Caribe, em intervalos de duas doses, ou mais, de margueritas, entre os gatos de sua casa em San Francisco de Paula, Cuba.

quinta-feira, setembro 10, 2009

Um pouco de Vieira

Questão é curiosa nesta Filosofia, qual seja mais precioso e de maiores quilates: se o primeiro amor, ou o segundo?

Ao primeiro ninguém pode negar que é o primogénito do coração, o morgado dos afectos, a flor do desejo, e as primícias da vontade.

Contudo, eu reconheço grandes vantagens no amor segundo. O primeiro é bisonho, o segundo é experimentado; o primeiro é aprendiz, o segundo é mestre: o primeiro pode ser ímpeto, o segundo não pode ser senão amor.

Enfim, o segundo amor, porque é segundo, é confirmação e ratificação do primeiro, e por isso não simples amor, senão duplicado, e amor sobre amor.

É verdade que o primeiro amor é o primogénito do coração; porém a vontade sempre livre não tem os seus bens vinculados.

Seja o primeiro, mas não por isso o maior.

(Padre António Vieira, in "Sermões")

sábado, agosto 29, 2009

Somos todos crentes

Nossos governantes, especialmente aqueles que afirmam ter fé, acreditam que andar em companhia de ladrões não é motivo de vergonha. Afinal, Jesus vivia entre eles, e morreu entre dois deles. Ladrões pobres, é claro, pois senão não estariam condenados. Mas ignoram que Jesus preocupava-se em levá-los para o Paraíso, como falou de sua cruz a um deles: "Em verdade, eu te digo, hoje estarás comigo no Paraíso." (Luc 23,43). Vieira, inspirador destas linhas, afirmava que, ou os governantes levam os ladrões ao Paraíso, ou os ladrões os carregam consigo para o Inferno.

E o que fazem os nossos governantes com seus ladrões? Nem os fazem pagar, não raro os aceitam de volta e até os promovem a cargos mais altos. Para de mais alto, mais roubarem. E depois, os governantes, não querem eles pagar. E o exemplo que temos vêm do próprio Criador. Assumiu a responsabilidade por uma nomeação feita com toda a lisura, transparente - não havia concorrentes e o candidato tinha méritos de sobra: "Deus disse: Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança." (Gen.1,26) - enviando seu próprio Filho para pagar, com seu doloroso sacrifício, o crime cometido por Adão, o primeiro homem e já o primeiro ladrão.

Saibam nossos governantes que andar em companhia de ladrões é tradição dos poderosos. Em outros tempos, os favoritos, aqueles que acompanhavam as autoridades, eram denominados laterones (aqueles que ficam ao lado). Com a corrupção da linguagem, vieram a ser chamados latrones, e, finalmente, em bom português, ladrões. Não só as palavras se corrompem, como também as funções.

terça-feira, junho 30, 2009

Inverno?

As amendoeiras e algumas moças de Ipanema que vestem cachecol, casaco e botas, parecem as únicas criaturas a acreditar que o inverno existe por aqui.

O Rio é o lugar escolhido pelo Sol para fugir de Buenos Aires, de Porto Alegre e Curitiba, daquelas manhãs nevoentas e geladas que o maio de lá começa a trazer.

sexta-feira, março 06, 2009

Protestos

Não sei porque as pessoas protestam contra certos comportamentos de algumas tribos em seus bairros ou em suas ruas. Pero de Magalhães Gândavo, que andou por aqui em meados do séc. XVI, publicou uma descrição dos costumes dos arredores da Farme de Amoedo, seus redutos, com a devida aprovaçam da Santa Inquisição, que nada viu que atentasse aos bons costumes:

APROVAÇAM
Li a presente obra de Pero de Magalhães, por mandado dos Senhores do Conselho geral da Inquiziçam, e nam tem cousa que seja contra nossa Santa Fee catholica, nem os bons costumes, antes muitas, muito pera ler, oje dez de Novembro de 1575.-- Francisco de Gouvea.

DO GENTIO QUE HA NESTA PROVINCIA, DA CONDIÇÃO E COSTUMES DELLE, E DE COMO SE GOVERNAM NA PAZ
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Algumas Indias ha que tambem entre elles determinam de ser castas, as quaes nam conhecem homem algum de nenhuma qualidade, nem o consentirão ainda que por isso as matem. Estas deixam todo o exercicio de mulheres e imitam os homens e seguem seus officios, como senam fossem femeas. Trazem os cabellos cortados da mesma maneira que os machos, e vão á guerra com seus arcos e frechas, e á caça perseverando sempre na companhia dos homens, e cada uma tem mulher que a serve, com quem diz que he casada, e assi se comunicam e conversam como marido e mulher.

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sexta-feira, fevereiro 27, 2009

Fatalidade recifense

Santo Agostinho afirmava que sabia o que era o tempo, mas que, se alguém lho perguntasse, não saberia responder. Existem coisas difíceis de definir, algumas impossíveis.

Estou sentado aqui, no mais antigo restaurante do Recife e, provavelmente, do Brasil, e fico pensando como dizer a alguém do Rio, o que é o Leite. Mário de Andrade foi quem chegou mais perto: fatalidade recifense. Mas não é tudo. Tudo, em Recife, é o Capibaribe, um rio que produz poetas e estadistas e em cujas margens o Leite nasceu.

O resto é imaginar a tripulação do Zepellin fazendo algazarra em uma de suas mesas, depois de atravessar o Atlântico. Não seria abusado alguém que citasse, entre seus fregueses, Gilberto Freyre, Assis Chateaubriand e João Pessoa (que teve a delicadeza de não ser assassinado no Leite, mas logo à saída).

Agora, lembrar que Sartre e Mme. De Beauvoir almoçaram por ali, é muita provocação.